terça-feira, 1 de julho de 2025

TESE PROPÕE PADRONIZAÇÃO INÉDITA NA BLINDAGEM DE VEÍCULOS CIVIS NO BRASIL

Tese de Doutorado da Poli-USP aponta lacunas críticas no setor e propõe metodologia inovadora para garantir de modo sistemático a qualidade, a segurança e a preservação da garantia de fábrica de veículos blindados civis

Civil armored vehicle (CAV) with typical ballistic protective systems. Source: adapted from Karvi (2020) apud Candido et al. (2022)

Apesar de liderar o ranking mundial de veículos civis blindados, o Brasil ainda carece de normas técnicas específicas e obrigatórias para o setor. Atualmente as normas e especificações focam somente nos materiais de proteção balística e nos controles logísticos e operacionais desses materiais junto aos fabricantes e blindadoras. Essa é a constatação do professor e pesquisador Guido Muzio Candido, cuja tese de doutorado defendida na Escola Politécnica da USP propõe uma metodologia inédita para o processo de blindagem de automóveis de passageiros.

A metodologia desenvolvida, chamada DfA2 - Design para Montagem e Blindagem, revisa toda a cadeia de blindagem de veículos civis: do projeto detalhado à montagem, passando pela rastreabilidade dos materiais de proteção, por testes automotivos e, quando necessário, testes virtuais balísticos até chegar à entrega ao consumidor final. A pesquisa integra referências de segurança balística, critérios de engenharia automotiva, diretrizes de manufatura e processos padronizados de qualidade, preservando inclusive as funcionalidades originais e a garantia de fábrica do veículo. “A aplicação da metodologia permite evitar falhas em componentes automotivos que interfiram com as peças de proteção balística, além de identificar adequadamente potenciais vulnerabilidades nas áreas protegidas do compartimento de passageiros”, esclarece o especialista.

“A metodologia DfA2 traz uma abordagem sistemática, baseada em fundamentos do design automotivo e requisitos balísticos, com foco em segurança, funcionalidade e durabilidade dos veículos”

“O mercado de veículos blindados civis (CAVs) é altamente lucrativo, especialmente em países com altos índices de violência, como é o caso do Brasil, cuja taxa de homicídios é três vezes maior que a dos Estados Unidos (segundo o IBGE*)”, contextualiza o professor. Segundo dados do Sistema de Controle de Veículos Blindados (Sicovab), mantido e controlado pelo Exército Brasileiro, em 2024 foram registrados 34.402 veículos blindados no País — 84,18% deles no estado de São Paulo. A maioria passa por blindagem após a fabricação em oficinas especializadas, chamadas de blindadoras, que são as empresas que realizam as operações de blindagem. Ou seja, normalmente o veículo sai da fábrica, vai para a concessionária e de lá para a blindadora, onde será parcialmente desmontado, adaptado para receber os materiais de proteção balística, e por fim remontado por essas empresas.

“Não existem normas padronizadas de qualidade ou processos específicos para as operações de blindagem”, destaca o prof. Guido Muzio. “Cada blindadora segue seus próprios critérios, sem necessidade de certificações – como, por exemplo, a ISO/TS 16949, que orienta e padroniza a indústria automotiva, das montadoras aos sistemistas. Sem os devidos critérios automotivos e balísticos, e sem orientações padronizadas, corre-se o risco de comprometer todo o processo: desde os componentes de segurança do automóvel, como os mecanismos das portas, airbags e cintos de segurança, até afetar negativamente a qualidade final como um todo – o que pode resultar na anulação das garantias de fábrica. A ausência de regulamentação, controle de qualidade e maior integração técnica com montadoras e concessionárias é um gargalo crítico do setor.”

“É fundamental que as oficinas conheçam detalhadamente o projeto original do veículo para realizar uma blindagem segura e eficiente”, reforça o professor. “A blindagem inclui reforços em portas, suspensão, janelas, sistemas eletrônicos, colunas, teto, rodas e outros componentes — o que torna o veículo significativamente mais pesado, entre 200 e 1.000 kg”.

O propósito de um veículo civil blindado é proteger seus ocupantes contra armas de fogo de até calibres .44 Magnum, mantendo a aparência externa praticamente idêntica à de um carro comum. Para isso, os veículos recebem aço inoxidável, vidros à prova de balas e placas de aramida ou compósitos, capazes de resistir a disparos destas munições, conforme o nível de proteção contratado. Além da blindagem básica, podem ser adicionados recursos como pneus run-flat, reforço em baterias e tanques de combustível, sistemas eletrônicos, sirenes e comunicadores. O custo para blindar um veículo gira entre R$ 80 mil e R$ 150 mil.

A pesquisa, que contou com o apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, envolveu empresas brasileiras de destaque do setor de blindagem, realizou a aplicação prática da metodologia em uma operação de blindagem com testes práticos em um veículo real, assim como simulações balísticas virtuais do mesmo automóvel. O estudo concluiu que investir em qualidade é, a longo prazo, mais econômico do que lidar com os custos da má qualidade (retrabalho, perdas, reinspeções e custos de garantia dos serviços ao cliente, além de possíveis riscos de vulnerabilidade na proteção aplicada). E que, ao investir em conhecimento e desenvolvimento de processos, é possível entregar ao cliente um sistema de proteção veicular mais seguro e confiável.

“A proposta é garantir o funcionamento pleno dos sistemas originais do veículo, ao mesmo tempo em que se assegura a resistência balística do compartimento de passageiros. Além do uso em veículos civis, a metodologia pode ser aplicada em viaturas policiais e governamentais”

A tese de doutorado foi orientada pelo prof. Dr. Paulo Carlos Kaminski, também do Centro de Engenharia Automotiva da Poli-USP. Um texto mais detalhado e a íntegra da tese estão disponíveis no site do Centro de Engenharia Automotiva da Poli-USP.

Prof. Dr. Guido Muzio Candido

Doutor em Engenharia Mecânica pela Escola Politécnica da USP. Atuação destacada em indústrias automotivas (BMW, CAOA, Ford, GM e Stellantis) com ênfase em engenharia de desenvolvimento de novos produtos automotivos, reduções de custos dos produtos, engenharia avançada, gestão de patentes na engenharia de produtos, gestão e auditoria de qualidade de processo e de fornecedores. Na área de blindagem, atuou em projetos de qualificação e validação de materiais e veículos civis blindados da BMW no Brasil com certificação balística pelo Instituto Beschussamt Ulm, órgão oficial do governo alemão. É professor orientador no MBA em Gestão e Engenharia de Produtos e Serviços no PECE/Poli-USP. Temas de interesse: processo de desenvolvimento do produto automotivo, qualidade do produto e processo automotivo, segurança e blindagem veicular.

Referências utilizadas

* Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, citado pelo IBGE

Sicovab: Sistema de Controle de Veículos Automotores Blindados

Abrablin: Associação Brasileira de Blindagem

Centro de Engenharia Automotiva da Poli/USP

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